Katumbo Eduardo Rocha Bié

Era noite e a lua já exibia todo seu explendor de dona daquele tempo, o frio insinuava abraços banda-sonorados pelo chirlear dos grilos que o vento trazia entre os milharais da lavra densa que envolvia a casa da tia Tchianda, num tremendo abraço meloso. Íamos no segundo dia desde que a tirania da vida calou o fôlego de Katumbo para sempre, no infotúnio de uma gravidez mal tirada. As nuvens carregadas de negro fizeram inveja ao luar e, num instante, encobriram-na, trazendo consigo o “endike”, escuridão bem escura que nem aos pirilampos que sempre traziam os olhares de Sara me permitiam vislumbre. O cenário de “alupoluis”, em volta à fogueira e de romance para os que se escondiam nos algures do quintal para roubar abraços e sorrisos nos universos de encantos da pessoa amada, tinha sido desmontado e tudo convidava para uma noite de sono. As exéquias tinham sido cumpridas e para amanhã, tão logo o “cocoricó” dos galos anunciasse a chegada do Sol, far-se-ia o “ovilonga”, reunião derradeira de fechar os todos assuntos sobre a malograda. As mulheres, todas envoltas em mantas, numa dormida campal. Os homens, aqueles que não provam do café com cheirinho, já se faziam à cubata de Kambiete que durante aqueles dias se tornou a hospedaria dos homens da família da cidade. Fomos, então, pró quarto, deitados na cama que o próprio Kambiete fizera com utensílios locais, antes que caíssemos no embalo do sono, eis que me faz o último apelo da noite, o já amigo kambiete.
-Não dá dormir com a barriga que virou nas chapas, vais sonhar mal, os mais velhos é que falaram.- Sem dizer palavra e já meio sonolento, limito a virar-me, pondo a barrica a beijar a esteira e o braço fora da cama, baloiçando como se de um pêndulo de relógio de parede se tratasse. O sono apodera-se de todos da cubata, de lá fora ainda vinham vozes de homens cujos espíritos tinham sido iluminados pelo café com cheirinho, não havendo, no entanto, escuridão qualquer para eles que já viam o mundo com os olhos da alma. Ao meu braço esticado para fora da cama, sinto um aperto de mão forte que levemente me vai puxando para em baixo da cama de paus e esteiras do Kambiete. Incapaz de resistir, deixo-me levar , ao cair, não foi nem ao lado, nem em baixo da cama onde fui calhar, era noutra dimensão espácio-temporal, difícil de identificar. Era um espaço de cores mistas, o céu azul-escurava, se o horizonte se avermelhasse, o inverso também acontecia, mas há instante que tudo era verd´amarelo, quando o céu profundo ficasse cor de rosa. As pessoas não tinham cores próprias, eram como hologramas, não se lhes podia tocar e tinham tons que se ajustavam ao seu estado de ânimo, o que impossibilitava fingir afectos e sentimentos, as pessoas se odiavam com sinceridade, também não se podia fingir que se ama alguém, vinha tudo explicito nas cores que engajavam os corpos. Os felizes ficavam azuis como céu de domingo, no verão, os infelizes, um imenso cinzento com as silhuetas pintadas em preto de tristeza, os nem felizes, nem infelizes tinham misturas dessas cores. Vi a falecida Katumbo num castanho que se misturava com cinza, ainda pouco familiarizada com o meio, estava acanhada, levitando num canto abraçada a si mesma com as pernas encolhidas, nas quais apoiava seu queixo. Ao lado de si, uma senhora de idade, que lhe falava coisas ao ouvido, suspeitei que lhe estivesse a dizer os 10 mandamentos da bíblia de lá, daquele outro mundo. Katumbo olhou para mim e nem veio ter comigo, não me trouxe uma caneca de Kissangua azeda como sempre fizera, limitou-se a servir-me um sorriso castanho, acompanhado por um olhar de dor e pranto de quem veio sem vontade. Na minha direcção vem vindo um idoso de barbas cinzentas. Por lá todos flutuam, não há solo firme em que se pise. Acenou-me em gesto de tudo bem e com a voz roca e firme disse-me –É aqui o mundo dos que se fartam de lá. Agora menina Katumbo está ao nosso cuidado, o coração dela não tem inveja, por isso fica do lado dos “wakwaombembwa”…
-Wakwombembwa? Questionei-lhe.
-Sim, são pessoas limpas. Aqui recebemos todos, os da paz e aqueles que vêm com maldade no coração, os “wakwonhã”. Aos mortos só os corpos se lhes joga fora, aos sete palmos do chão, os espíritos esvoaçam, vêm cá ter, até que chegue o dia de voltar à terra, habitar outras massas de carne. Eloquecionava, o idoso(…)