Agridoce Joana Rodrigues Ribeiro
Olho para ela enquanto me conta o que nunca antes contou. Para aqueles olhos que conheço tao bem, aqueles olhos que já me fizeram mil promessas, promessas sempre cumpridas. Mas hoje, estes olhos estão um tom mais negro, não me olham com a firmeza a que me acostumei.
"Nunca me hei de esquecer" diz ela.
Estamos à mesa, eu e ela, a casca da batata doce que eu teimo em deixar no prato é o ponto onde os olhos dela se focam. Não passaram nem cinco minutos desde que o sorriso deixou os labios dela.
Se soubesse que a minha recusa de comer o resto dos brocolos despoletaria esta melancolia, nao o teria feito. Mas por outro lado estou a presenciar um lado vulneravel na mulher mais forte que conheço. Não será uma honra presenciar, através das suas palavras e tímidos gestos, uma história nunca contada?
"Come os brócolos, Joana."
"Oh mãe, não gosto mesmo, desculpa."
"Filha, se soubesses o que era a fome nao fazias estas fitas. Se tivesses passado pelo que eu passei..."
Olho para ela enquanto se debate internamente se deve ou nao prosseguir.
"Nunca me hei de esquecer," os dedos entrelaçam-se em cima da mesa, pálidos em contraste com o verde escuro da toalha "de me deitar no chão com as minhas irmãs assim que ouviamos os tiros, as janelas abertas como se convidassem o perigo a entrar. Não me hei de esquecer do sabor intragavel daquela papa que a minha mãe fazia que nada mais era do que farinha e agua com alguns cogumelos selvagens que ela própria apanhava. Só ela sabia colher os que não eram venenosos e só ela sabia o que lhe custava ser somente esta a alimentação disponível para as suas cinco filhas."
Não sei o que lhe hei de responder. Nada poderá apagar a mágoa que ela leva no peito, portanto deixo-a continuar.
"Quando, de facto, existia carne na mesa, como podes imaginar esta tinha que ser desdobrada por 8 bocas."
"Oito?"
"Sim. Cinco irmãs, uma mãe e um pai e o cão... o cão adorado pelo meu pai que ficava com a carne macia, enquanto eu ficava com a gordura, com os ossos, com os nervos. O maldito cão que era tratado como rei enquanto eu assistia" calou-se, com os labios tensamente comprimidos um contra o outro.
Pego-lhe na mão, tentando transmitir força para continuar o seu relato, mas sem a certeza se insistir seria a melhor ideia.
"Apesar de termos vindo para Portugal quando eu era ainda muito pequena, estas memórias nunca se hão de dissipar. Mas não são estas memórias que associo a Africa. A minha terra, Moçamedes, lembro-a como sendo linda apesar da guerra. Lembro-a como sendo fonte de mil segredos, Fonte de frutos que nunca mais tive o prazer de provar, fonte de uma calorosa comunidade que nunca se há de calar. Apesar de ter sido o melhor, deixar a minha terra para trás foi algo que deixou em mim uma marca. O meu sonho é la voltar, reavivar as memórias de uma menina de cinco anos com olhos rasgados, que mais parecia asiática que africana."
"Como é que vieste para Portugal?"
"Nunca me hei de esquecer" diz ela.
Estamos à mesa, eu e ela, a casca da batata doce que eu teimo em deixar no prato é o ponto onde os olhos dela se focam. Não passaram nem cinco minutos desde que o sorriso deixou os labios dela.
Se soubesse que a minha recusa de comer o resto dos brocolos despoletaria esta melancolia, nao o teria feito. Mas por outro lado estou a presenciar um lado vulneravel na mulher mais forte que conheço. Não será uma honra presenciar, através das suas palavras e tímidos gestos, uma história nunca contada?
"Come os brócolos, Joana."
"Oh mãe, não gosto mesmo, desculpa."
"Filha, se soubesses o que era a fome nao fazias estas fitas. Se tivesses passado pelo que eu passei..."
Olho para ela enquanto se debate internamente se deve ou nao prosseguir.
"Nunca me hei de esquecer," os dedos entrelaçam-se em cima da mesa, pálidos em contraste com o verde escuro da toalha "de me deitar no chão com as minhas irmãs assim que ouviamos os tiros, as janelas abertas como se convidassem o perigo a entrar. Não me hei de esquecer do sabor intragavel daquela papa que a minha mãe fazia que nada mais era do que farinha e agua com alguns cogumelos selvagens que ela própria apanhava. Só ela sabia colher os que não eram venenosos e só ela sabia o que lhe custava ser somente esta a alimentação disponível para as suas cinco filhas."
Não sei o que lhe hei de responder. Nada poderá apagar a mágoa que ela leva no peito, portanto deixo-a continuar.
"Quando, de facto, existia carne na mesa, como podes imaginar esta tinha que ser desdobrada por 8 bocas."
"Oito?"
"Sim. Cinco irmãs, uma mãe e um pai e o cão... o cão adorado pelo meu pai que ficava com a carne macia, enquanto eu ficava com a gordura, com os ossos, com os nervos. O maldito cão que era tratado como rei enquanto eu assistia" calou-se, com os labios tensamente comprimidos um contra o outro.
Pego-lhe na mão, tentando transmitir força para continuar o seu relato, mas sem a certeza se insistir seria a melhor ideia.
"Apesar de termos vindo para Portugal quando eu era ainda muito pequena, estas memórias nunca se hão de dissipar. Mas não são estas memórias que associo a Africa. A minha terra, Moçamedes, lembro-a como sendo linda apesar da guerra. Lembro-a como sendo fonte de mil segredos, Fonte de frutos que nunca mais tive o prazer de provar, fonte de uma calorosa comunidade que nunca se há de calar. Apesar de ter sido o melhor, deixar a minha terra para trás foi algo que deixou em mim uma marca. O meu sonho é la voltar, reavivar as memórias de uma menina de cinco anos com olhos rasgados, que mais parecia asiática que africana."
"Como é que vieste para Portugal?"